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Diario de Bordo

Pequenos grandes nadas que me vao acontecendo...

Diario de Bordo

Pequenos grandes nadas que me vao acontecendo...

Seg | 08.06.20

Um canario amarelo!

Calimero

Por vezes, tenho este estranho hábito de me alhear do mundo terreno por um bocadinho… quer dizer, vendo bem, não me alheio do mundo terreno, apenas paro um bocadinho para olhar atentamente para ele, negligenciando o obvio, o comum, o corriqueiro, a rotina que abafa a respiração e que nos hipnotiza as sensações.

Confesso que me senti um estranho, percorri as pedras da calçada com a mesma quantidade de passos em que me lembrei de si, passos pequeninos que transformavam aquelas pedras em suave alcatifa e que tranquilizavam a minha caminhada… Não… até aqui nada de estranho, aqueles que em mim habitam acompanham-me para todo o lado, sou como que a modos um mariquinhas que não pode sair à rua sem a companhia daqueles que ama… Sim… quase que liberto dos meus lábios, “Dê-me a mão ou fico perdido”, “ Não te afastes muito de mim, não aceleres o teu passo nem o retraias, caminha somente a meu lado”… admito… talvez seja um bocadinho estranho.

Íamos tranquilamente rua abaixo, por entre casinhas modestas, herdeiras de zonas de bairro e de festas populares, em que quase se podia imaginar os refugados da hora de almoço a escapulirem-se pelas janelas feito meninos traquinas, parei por um minuto, a minha mão ficou, a tua puxou-me sem que se deslargassem, perguntas-te me se estava bem, perguntas-te me porque parei… “ Olha… ali. “ .

Parei a olhar por uns segundos para um rosto como tantos outros, um rosto como tantos outros que se debruça na varanda, deambulando o olhar como se assistisse a uma partida de ténis, bola cá, bola lá, gente que passa ali, gente que passa acolá, a mesma rotina, o mesmo hábito adquirido daquele olhar a que já nada o faz pasmar, um senhor de idade parecia debruçar também a sua alma naquela varanda, quase que via o anjinho e o diabinho em cada um dos seus ombros, “ Atira-te, livra-te desta rotina, livra-te desta prisão feita de ponteiros de relógio que não andam”, “ Shhhhh não faças isso, não lhe ligues, o sol nasce todos os dias e também brilha para ti” … retive nos meus olhos o seu olhar pesado, quase parecia fazer esquecer a fachada do prédio escurecida pelo tempo e que se pudesse falar, sentaríamos no seu colo a ouvir mil e uma histórias, o rosto afigurou-se me um velho retracto, as barbas pintadas de nicotina fizeram-me lembrar os velhos retractos amarelecidos que jazem profundamente num álbum que há muito não se abre, as mãos caiam-lhe pela varanda, esmorecidas, cansadas de anos de luta e que agora já só lhe restam forças para segurar num cigarro, olhei aquele homem a quem a alma parecia desvanecer-se mais rápido que o cigarro que segurava na mão… a seu lado uma gaiola segurava a parede… juro-lhe … tive quase a sensação de que aquela gaiola segurava toda aquela varanda, um alegre e amarelo canário cantava, não descortinei a letra, não retive a melodia, mas cantava alegremente, diria mesmo que segredava palavras meigas ao ouvido de uma alma cansada, a voz não lhe falhava, nem esmorecia… cantava, cantava, cantava sem que a voz lhe doesse.

Voltaste a perguntar se estava bem… sorri… sorri mas não esqueci aquele rosto envelhecido, guardei-o na memória.

Puxei a tua mão que nem por um segundo me deslargou, nem por um segundo me deixa cair, puxei a tua mão e sorri-te dizendo numa voz de canário amarelo que por ti se sente capaz de segurar o mundo… “ Deixa-me cantar para ti.”

 

Jp

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