Ela engole um soluço todos os dias. Fica ali, guardado entre as amígdalas, que nunca tirou em miúda, e a epiglote.
Chora no banho com a água a tombar-lhe na cabeça e porque os olhos inchados terão sempre a justificação da água quente, do banho prolongado, da toalha esfregada em excesso para sair a maquilhagem. Também chora à noite, quando ninguém ouve, baixinho, e procura respirar devagar para que o colchão não se agite. Ninguém vê o turbilhão máquina de lavar em modo centrifugação que lhe entope o estômago. Nem o nó no peito. Nem como lhe custa encher o peito de ar mesmo quando respira fundo.
Não quer tomar banho. Mas só pode chorar ali. Por isso, entra, todos os dias, na banheira para chorar. Sentada. A sentir as gotas pesadas na cabeça e a querer que fossem pedras de granito para acabar com aquilo rapidamente.
Sorri muito. Delicada e dedicada mas a tremura da perna constante debaixo da secretária. Não dá para parar. Não consegue. Está lá. A candura do rosto a contrastar com o fervor do joelho exausto debaixo da mesa.
Vamos dar-lhe um nome. Ana. Ana não está feliz. Ana não sabe bem como ser feliz. Ana quer coisas. Umas boas, outras más. Ana come pouco mas bebe demais. Gosta mais de si quando bebe demais. É mais feliz com o tanino a misturar-se no seu sangue. É mais feliz. Todos os dias olha para o relógio e espera pelas 8 da noite. Porque abrir uma garrafa às oito da noite é digno. Antes seria estranho. Ela e a garrafa e o relógio. Às oito, abre-a. Ninguém nota que está mais calada ao jantar. Que está mais tensa no sofá. Que se irrita mais com os trabalhos de casa de geografia. Que dorme mal. Que acorda muitas vezes.
Deita-se e faz amor. Ele faz amor. Ela faz raiva. Ela faz outra coisa qualquer. Ela faz qualquer coisa sem amor. Porque nem por ela sente amor. Adormeceram. Ela chorou metade da noite. Adormeceu durante a outra metade. Quando ele se levantou, deu-lhe um beijo e nem notou que Ana, de olhos fechados, continuava a chorar para dentro.
Ana voltou a levantar-se e a tomar banho. Só para poder chorar.
Ana não esconde bem os sinais. É má a fazê-lo. E a cegueira dos outros também mata. Ana morria aos poucos. Morreria um dia. Só não sabia quando e às mãos de quem.
Nesse dia, na secretária, de sorriso cândido e calma aparente, enquanto martelava a raiva disfarçada no teclado do computador, sentiu uma mão quente pousar-lhe no joelho esgotado. A colega, do lado. Afinal, menos cega. Sorriu-lhe. “Ana, vamos almoçar hoje as duas, está bem? Vamos falar desse… joelho.”
Eu não vi, não estive lá. Mas parece que cuspiu o soluço em bolas de pêlo de dor.
É preciso falar dos nossos joelhos...mesmo quando não tremem...ou então descobrir porque tremem...acho que é o mais importante...descobrir porque tremem...:)))) bjs Cali e dia sem tremuras
Fantástico, minha querida Cali! E tanto que dava que falar, tanto que faz pensar... tantas realidades contidas na tua partilha! Obrigada por esta publicação! Muitos beijinhos, minha amiga, tem uma tarde tranquila!